É a mais pura falta do que escrever o que vem me afastando daqui. Já não sinto tanto mal-estar com o meu corpo. Racionalmente sei que tenho uma aparência imunda e deveria ter vergonha de sair à público, mas minha concentração tem se voltado mais a reparar no que as outras mulheres, vitrines e celebridades vestem, do que ao auto-ódio. É um sentimento qualquer entre a inveja, a admiração e a inspiração no exemplo. Dependendo do meu humor no dia, pode ser mais para inveja, ou mais para inspiração. Às vezes simplesmente depressão. Sinto que meu mp3 tem executado cada vez mais músicas tristes que felizes.
Parece que cada dia descubro mais um defeito no meu corpo. Tento afastar esses pensamentos, dizendo a mim mesma com firmeza "estás a ficar louca e paranóica, esse detalhe não é nada de tão grave e não deves odiar-te por ele". Penso isso principalmente quando reparo em algo em mim que não posso mudar. Mas dali a pouco estou novamente a pensar em modos de remover aquela nova imperfeição recém-reparada. Chegará o dia em que não haverá mais uma só célula em mim que não me deixe descontente?
A esse respeito venho sendo otimista, me parece que não. Tenho depositado fortes esperanças de que ano que vem (não pela passagem do ano, mas pela passagem por uma plástica), tudo vai ser diferente, aquilo que mais me incomoda em mim será mudado, e me prometo e reprometo que seja lá qual for o resultado final, vou aceitá-lo, e que todo o resto de problemas são detalhes, que eu vou relevar para aproveitar a vida. O horizonte me parece bonito como desejo ser: primeiro a plástica, depois um pós-operatório enfrentado com alegria e resignação, para finalmente montes de belas roupas, baladas, momentos alegres, auto-confiança para me respeitar e com isso impor o respeito que mereço receber.
Não posso perder isso de vista. Ano após ano venho me prometendo "ano que vem vai ser diferente". Mudo de ambiente, quero conhecer pessoas novas, nas quais causar uma boa primeira impressão, e daí por diante ter relacionamentos sadios com elas e comigo. Mas a minha sombra interna vai junto para onde quer que eu fuja e escurece as minhas possibilidades de, este novo ano, me dar bem com as pessoas, este novo ano, ser mais extrovertida, este novo ano, ser disciplinada o bastante para sempre sair com boa aparência todo dia. E sistematicamente falho, aliás há 6 anos que falho. Desta vez creio que não porque vou passar a me amar, e com isso creio que finalmente será possível ser feliz.
Mas o amor-próprio não pode vir antes da beleza, e a beleza não pode vir antes de ser magra, ter seios e quadris fartos, pele bonita, cabelo bonito e roupas com calçados legais, além de um aspecto bem cuidado. Ando otimista pois essas coisas todas me parecem fáceis de alcançar. Sei como fazê-lo, e me parece apenas uma questão de tempo. Mas, se já sei o caminho, por que me saboto? Por que não páro de fazer o contrário daquilo que sei que devo? De comer porcarias, de não fazer a sombrancelha, de deixar as unhas de tamanhos desiguais, de ter os cabelos revoltos, e o olhar cabisbaixo?
Talvez não seja uma questão de o tempo passar, mas de a motivação chegar. Uma motivação forte, que me inspire disciplina, que me impulsione a agir como devo agir para atingir minhas metas. Por que ela não vem? Por que me abandono à preguiça, aos maus hábitos, ao descuido? Eu entendo o que quero, entendo como fazer, entendo a necessidade de fazer, e entretando não faço. Só o que não entendo é a mim mesma. As minhas contradições internas, as minhas crises de culpa.
Entendo bem demais, bem o bastante para sentir remorsos, que estou trabalhando por uma indústria de fazer loucas que quer sugar o meu dinheiro, o meu tempo produtivo, a minha qualidade de vida. Para me induzir ao consumo, me tirar do jogo de poder e deixá-lo nas mãos dos homens. Uma indústria que não se importa com a minha morte, nem a de todas as anoréxicas e bulímicas, nem as dos vigoréxicos e outros tantos transtornados como eu. As indústrias têxteis, de cosméticos, de plásticas, as academias, a imprensa de massas, nenhum deles se importa com as nossas dores, as nossas lágrimas, os nossos espelhos internos e externos quebrados, os nossos 7 anos de azar por quebrar o refletor das nossas imagens e nos enxergarmos nos seus cacos torcidos.
E mesmo entendendo tudo isso, não consigo jogar tudo para o alto e me aceitar sem ser bela nos moldes de beleza estabelecidos. E mesmo sabendo como me encaixar, não empreendo a disciplina e o auto-controle necessários para fazê-lo. Deus, o que há de errado comigo?
Sinto-me uma folha carregada por um rio caudaloso e denso, que corre rápido, a que chamam sociedade.Esse coletivo de gotas, individuais mas não-individualizáveis, tão mais forte que eu, vai em direção a um mar desconhecido por mim no qual invariavelmente desembocará. Meus esforços em contrário, meus protestos, minha indignação nem sequer são fortes o bastante para que eu me mova contra essa correnteza, sou só uma folha inanimada, dependo desse entorno para ter deslocamento, mesmo que em uma direção que não aprecio. Tenho a clorofila que me particulariza sendo arrancada pelas águas, às quais tinjo muitíssimo levemente mas não altero de modo algum a direção. E vou indo assim sem querer, para onde me carregam, me perguntando de onde tirei forças para questionar a direção tomada, e no final para quê isso serviu, sem ser me provocar sofrimento. Existirá "livre-arbítrio" na História?