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sexta-feira, 4 de março de 2011

 "(...) conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo. Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira toda a genialidade de sua fantasia, toda a força de seu poderoso pensamento. Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade, cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amá-los, para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o 'amarás teu próximo!' estava tão entranhado em sua alma quanto 'odiar-se a si mesmo'; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento." O Lobo Da Estepe - Hermann Hesse

 Pois bem, aqui estou eu, ou o que restou de mim, após esse longo processo de auto-desconstrução. Mudei de peso, corte e cor dos cabelos, seios, roupas, unhas, pele. Modos. Visão de mundo. E de mim mesma.
 Hoje gosto do que vejo no espelho, não sinto vergonha de quem sou, não sinto auto-desprezo, não sinto inveja, não me sinto inferior.
 Dizem que o meu caminhar vai mais elegante, que eu pareço melhor, que tenho sorrido mais. As pessoas elogiam minhas novas roupas, ouço cantadas, recebi uma proposta de namoro, comecei a freqüentar baladas, estou aprendendo a me aproximar dos rapazes...
 Pelo lado negativo, ainda estou me recuperando de uma tentativa de estupro ocorrida na última noite de quarta-feira. Mas não aconteceu nada de grave. (Não, eu não estava de decote nem usando uma roupa colada, ou curta. Estava com uma jaqueta folgada, calça jeans e um salto baixo. Só não consigo deixar de sentir uma espécie de orgulho ao pensar "alguém mal pode conter o desejo que sente por mim")
 De alguma forma, embora eu não odeie mais a minha aparência, não tenho 100% de bem-estar com relação a ela. Eu sinto alguma culpa por me encaixar em um padrão que deveria ser combatido, e não endossado. Mas sei que foi melhor pra mim reconhecer que preciso fazer isso por mim mesma, mesmo que não seja o desejável para o conjunto da sociedade na qual estou inserida.
 E depois disso tudo, sinto que pouco mudou de verdade. Porque meu objetivo era combater a minha solidão, tarefa que ainda não concluí.
 Consigo sociabilizar e ser mais bem-aceita pelas pessoas, mas não consigo deixar de notar o quanto esses relacionamentos são frívolos e carecem de profundidade. São também efêmeros e muitas vezes baseados em interesses. Eu preciso me reaproximar das amigas de verdade (coisa que já tenho feito, embora com falhas).
 Ainda não tenho um namorado, mas isso já não me parece algo impossível, só algo que levará tempo. Não sou mais carente para ficar com qualquer um que queira.
 Mas a coisa mais importante aconteceu ontem. Tive um lampejo, um insight, uma epifania. Foi libertador, e tenho que dividir.
 Sabem o que estava nas raízes da minha falta de amor-próprio, de auto-aceitação, da minha carência? O fato de eu não ter sido amada pelo meu pai. "Se nem o meu pai me amou, eu devo ser horrível. Todo pai ama a própria filha, só uma monstra é tão ruim que nem o pai gosta dela. Se nem ele me ama, quem vai amar?" Eu me dizia, desde os meus 3 anos de idade, embora eu já tivesse esquecido disso.
 Repentinamente me dei conta de que, simplesmente, o problema não está em mim. Não é a minha aparência. Não são os meus defeitos - quem não os tem? Eu sou linda. Se eu não fosse, isso não justificaria nada, as pessoas não merecem amor só depois de serem belas. Eu sou um ser humano fantástico. Sou culta, sou altruísta... Foi um abandono na infância eclipsou isso. Só que agora basta.
 Eu estava tomando café-da-manhã, quando de súbito, me lembrei que quando eu era mais nova, fazia isso, subia as escadas até o meu quarto, e ficava chorando em algum lugar visível, dizendo "ninguém gosta de mim". Isso era um misto de desabafo com necessidade de chamar a atenção das pessoas para a minha tristeza. E as pessoas da minha casa nunca, por mais que eu desejasse isso com todas as forças, faziam como eu fantasiava, e me perguntavam "Tally, o que você tem? Por que está chorando? Posso te ajudar?" Não, ninguém se importava.
 Lembrei também que eu ia toda orgulhosa mostrar para o meu pai meus desenhos, minhas notas, as coisas que eu aprendi. Ele demonstrava desinteresse e me pedia para que eu o deixasse ver o jogo de futebol, terminar de comer, ou simplesmente ficar sozinho, "em paz". Eu odiava a idéia de a minha presença roubar a paz dele. Elogios? Nunca.
 Eu fui crescendo e começaram as brigas. Cada centavo gasto comigo jogado na minha cara como um favor custoso e terrível que eu tinha que ter vergonha de ter imputado. Berros, agressão física, inclusive em público. As pessoas comentavam, desviavam os olhos de vergonha, mas acudir? Nunca. Minhas lágrimas foram desconsideradas, e nunca ouvi ou ouvirei um pedido de desculpas.
 E então vieram as críticas. A tudo, não vou ficar enumerando, não quero aborrecer. Mas elas foram severas, dolorosas, penetrantes, e o mais importante: imerecidas.
 E por fim, veio o abandono definitivo.
 Nunca vou entender o motivo, mas hoje "conheci a verdade e ela me libertou": qualquer que tenha sido, não fui a culpada. Nenhuma criança merece a indiferença, o abandono, os espancamentos, as crises de berros, o ódio. O ódio, o ódio puro, pulsando nas veias, avermelhando o rosto, o corpo todo, impelindo ao ataque físico, e a todo tipo de demonstrações de cólera. Em público, na frente de familiares, desconhecidos, na rua. Nenhuma criança merece ouvir que não devia ter nascido, todas as vidas são preciosas para o mundo. Nenhuma criança merece ser considerado um saco de despesas que o pai se arrepende de ter gerado. Se ele ao menos fosse muito pobre... mas não é. Ele é só mesquinho, egocêntrico, frio, malévolo. Eu nunca fiz nem poderia ter feito nada para ele.
 Não, eu não sou detestável. Eu não sou uma monstra. Eu não sou horrível. Ele é horrível.  Eu sou digna de amor, eu sou especial, eu sou única. Não li isso na Bíblia, nem em livros de auto-ajuda. Não foi porque uma amiga disse. Não vi na televisão. Nenhum pastor evangélico me pregou isso. De repente, eu simplesmente soube disso.
 Pai, obrigada por tudo. O seu ódio me impulsionou aos mais altos patamares de auto-exigência, e portanto, de auto-aperfeiçoamento.
 Agora, acabou. Hoje eu sou livre. Para me amar, ser feliz, e receber amor de volta. Não importa como eu aparente ser.

 ----- ♥ -----   ----- ♥ -----  ----- ♥ ----- Algumas siliconadas ----- ♥ -----  ----- ♥ -----  ----- ♥ ----- 








4 comentários:

Miss Blueberry disse...

É, amiga, eu temia q isso acontecesse: q vc botasse muita fé nas suas mudanças físicas e achasse q isso bastaria. Bom, mas acho q vc fez o certo, pq a gente sempre tem de procurar melhorar - sem se martirizar.

Onde vc estava qdo tentaram te atacar? Pegaram o desgraçado?

Olha, não sei muito o que dizer a respeito do seu pai. Só espero e desejo que isso se resolva na sua mente da melhor forma possível. Concordo com td o que disse.

Um beijo.

Anônimo disse...

você deve estar otima por fora ..se concentre por dentro tbem..

bjos

menina disse...

que bom vir aqui e ver que vc está se aceitando mais. Fico feliz pelo seu progresso *-*
se cuida e muito sucesso pra vc ^^

Bia disse...

Olá.

Encontrar seu blog foi algo maravilhoso e dolorido ao mesmo tempo. Reconheci em vários relatos muito do que sinto mas não consigo formular nem expressar com tanta clareza e honestidade quanto você... Especialmente a dificuldade em estabelecer uma ponte entre minhas convicções políticas e minhas carências psicológicas, o desejo ou mesmo necessidade de me enquadrar num modelo que abomino e dentro do qual nunca criaria minha filha.
Houve também passagens que li com desconforto (como "Talvez um dia eu venha a ter um relacionamento homossexual. Talvez nem isso", que me pareceu reforçar o estereótipo de que lésbicas são mulheres que não conseguiram se relacionar com homens e buscaram na homossexualidade uma espécie de socorro), incompreensão e até mesmo raiva (como quando escreveu, a respeito da violência de que fora vítima: "Só não consigo deixar de sentir uma espécie de orgulho ao pensar 'alguém mal pode conter o desejo que sente por mim'").
Espero que não se sinta invadida ou cerceada na sua liberdade. Eu sei que esse é um espaço de confissões particulares e respeito muito isso. Mas como é também espaço de compartilhamento, me senti de certa maneira autorizada a comentar e só me animei a fazê-lo porque os seus textos me causaram grande impacto. Cheguei aqui porque estava saltando de um blog para outro; parei quando li "feminismo"; continuei porque vi que ele andava aos tropeços com papéis e cobranças oriundos justamente do machismo; me identifiquei bastante, discordei outro tanto e me atrevi a comentar.
Não te conheço, nunca conhecerei, mas me senti conectada a você. Empatia, compaixão, não sei... Desejo que você tenha uma boa vida.

Cordialmente
Bia